CONTINUAMOS NO MESMO TOM DE CINZA- O que 50 Tons de Cinza escancarou não pode ser esquecido.



Joana já havia comido seus três chocolates diários antes de enfiar na boca o último sonho de valsa do armário de guloseimas. O que Joana não sabia era que sua irmã mais velha, Paula, havia comprado o bombom para comemorar o fim de sua dieta. Ao ver que seu chocolate havia sumido e já salivando por aquele gostinho doce, Paula dirige furiosa até a padaria mais perto para comprar outro sonho de valsa que ela degusta por exatamente 10 minutos.
            A diferença entre Paula e Joana pode ser diretamente comparada ao público que amou e ao público que odiou 50 tons de cinza. Após um mês no topo da lista de bilheteria, o filme cede o primeiro lugar a outros filmes em cartaz, tendo acumulado nesse mês 83 milhões de reais, só no Brasil. Mas o que será que gerou essa estreia que levou 167,8 mil brasileiros no primeiro fim de semana aos cinemas, arrecadando R$ 2,5 milhões só nesses primeiros dias?
Um fator é inegável: O tema do livro é bastante polêmico, fazendo com que a maioria tenha uma posição forte sobre o assunto, seja ela positiva ou negativa. Aqueles que não gostam, justificam-se de maneira prática e distante: a narrativa é repetitiva, parece que não tem estória; esse tal de Christian é um controlador insuportável; esse tapinha não é nada; esses orgasmos são muito falsos, entre outros. Ou seja, Christian Grey para elas não é nada mais que um maníaco por controle que dá uns tapinhas para se divertir, do mesmo jeito que o sonho de valsa para Joana era só mais um chocolate.
Perguntando para algumas pessoas que adoraram o filme o por que elas havia gostado tanto, me surpreendi com a resposta: “Ah. É uma estória de amor”. Amor? Pensei eu. Não fiquei muito convencida e comecei a refletir sobre o que nesse romance estava apaixonando tantas mulheres que as faziam consumir esse conteúdo como o precioso sonho de valsa de Paula. As especulações foram as seguintes:
1) A “safadeza”: Não é somente a questão da mulher querer apimentar a relação com um chicotinho ou outro brinquedo, mas também deixar de lado essa herança comportamental de excesso de pudor que ainda carregamos e dar mais atenção àquela parte do desejo presente em todas nós que pode estar esquecida e merece ser despertada. No livro, Anastásia cita constantemente as reações de sua Deusa interior. Essa Deusa costuma dar piruetas no ar quando a personagem pensa em alguma coisa mais erótica ou menciona o quarto vermelho de Christian, entrando em conflito, muitas vezes, com o lado racional da personagem.
A utilização desse elemento da Deusa é um arquétipo muito utilizado na narrativa, já explicitado por Carl Jung. Segundo Jung, os arquétipos estão presentes no inconsciente coletivo, ou seja, mesmo em diferentes culturas ou épocas, os seres humanos possuem uma memória coletiva repleta de símbolos utilizados para interpretar o mundo em que vivem. “Anima”, o arquétipo de Jung referente à Deusa que estamos falando, é representada como uma ninfa da floresta, uma virgem mulher sedutora e está presente em estórias como Eva, Elena de Tróia ou em personalidades, como Marylin Monroe.
A Deusa é uma mulher poderosa, que não somente consegue abandonar o pudor e sentir prazer, mas também utiliza de sua desenvoltura e sensualidade para proporcionar as melhores experiências e sensações a seu parceiro. São poucas as mulheres que conseguem se sentir tão poderosas, e a falta dessa pimenta na relação pode fazer a mente voar alto.
2) A relevância emocional: Vi diversas vezes mulheres causando ciúmes em seus parceiros ou ameaçando o término do relacionamento somente para ter o gostinho de saber o quanto seus companheiros precisavam delas. E as casadas? Fazem de tudo, limpam a casa, cuidam dos filhos e trabalham e, se estiver faltando sal na comida, o marido reclama. As situações citadas podem ser extremas, mas mesmo que seja apenas uma vozinha na nossa cabeça, queremos ser apreciadas e nos sentirmos relevantes.
Agora, vejamos a narrativa: Anastásia, uma menina sem graça conseguiu que o milionário mais inacessível do planeta mudasse todas as suas atitudes em apenas semanas. Um feito e tanto de fato. O homem que nunca tinha dormido com ninguém e só havia “fodido forte” com suas submissas, passa a fazer amor e mudar seus conceitos. As concessões só aumentam ao longo do primeiro livro, até que no começo do segundo, Christian sugere ceder a um namoro normal. Agora eu pergunto: quantas vezes vocês tentaram começar uma dieta? Essa mudança radical dos hábitos constituídos ao longo de uma vida em algumas semanas, é de fato ilusória. Não há amor que seja assim tão instantâneo, mas, de fato, conseguir mudar uma pessoa por ela quer tanto ficar com você que se dobra às suas vontades, é um combustível e tanto para o ego.
3) A auto estima: Anastásia, personagem baseada em Bela, da trilogia Crepúsculo, se considera aquela menina estranha, que não se encaixa em lugar nenhum e vive se comparando com sua amiga, Kate, que pelas descrições, é uma beldade. Anastásia chega até a se comparar a Ícaro, personagem da mitologia grega que com asas improvisadas, acabou morrendo por voar perto demais do sol. O sol de Anastásia, no caso, é Christian Grey, um sonho muito além de seu alcance, que ela não deveria nem pensar em cobiçar.
Na estória, temos, então, essa mulher, insegura consigo mesma que, de repente, se vê apreciada por esse homem tudo de bom, disposto a cuidar dela por completo e que não perde a oportunidade de elogiá-la. Em todos os momentos íntimos dos dois, Christian fala o quanto Anastásia é linda e não deveria se envergonhar de seu corpo, o quanto ele a quer e o quanto é cheirosa. Computador, celular e carro novos a parte, quem não levaria uns tapinhas só pra ouvir isso todos os dias?
Após destrinchar esses quesitos, entendo que o amor que pareceu tão atrativo nessa estória, contém bagagens mais complexas. É como nos contos de fadas, que o príncipe com um castelo (apartamento luxuoso), reino (Grey’s Interprise), um cavalo branco (helicóptero/jato/carros de luxo) se interessa pela camponesa simplória e ignora todas as outras candidatas que pareciam mais propícias para a vaga de princesa (no caso de Grey, todas as mulheres lindas e loiras que o cercam).
Além desse cenário destoante da realidade, temos também um fator que apareceu em todos os pontos de análise colocados: A percepção da mulher de si vinculada a percepção de seu parceiro em relação a ela. Ao mesmo tempo que temos a Deusa fogosa querendo dar as caras, temos a menininha insegura que precisa se auto afirmar que busca a aprovação de seu(s) parceiro(s).
Essa dependência da felicidade vinculada ao outro, nos leva a outra questão: Será que a mulher do novo século está preparada mesmo para ser independente? Ou será que ela ainda valoriza essa figura do homem controlador, que a dá segurança e respeito, que não a deixa pagar a conta e permita que ela seja “safada” na cama? Será que precisamos que alguém nos possibilite explorar nossa sexualidade, que mude por nós e que nos mostre o quanto somos bonitas para sermos felizes?
Gosto de pensar que essa situação, apesar de difícil, pode ser alterada. Assim como a dieta, é difícil mudar o modo como sentimos as coisas a tempos. O amor nos foi ensinado de um jeito errôneo, e acabamos concentrando nossos esforços em fazê-lo funcionar da maneira mais dolorosa. E então, os contos de fadas se apresentam como escape das nossas frustrações. Eu mesma li o primeiro livro como Joana do início do artigo. Odiei tudo e não suportava lê-lo, mas ao começar o segundo livro da saga, o fiz como Paula, e cheguei a me sensibilizar ao descobrir junto com Anastásia que seu ex, Christian, sofreu tanto quanto ela com a separação, desejando que outros me apreciassem da mesma forma.
Raras são às vezes que pessoas demonstram consideração e zelo por nós, mulheres ou homens, e acabamos por buscar esse reconhecimento desesperadamente em nossos relacionamentos. Queremos que aquela pessoa nos dê tudo o que achamos que merecemos, mas não fomos capazes de nos dar.
Mas como não fazê-lo? Está em nossas raízes e em como fomos ensinados pela sociedade. Quando eu tinha por volta de 14 anos, minhas amigas me deram a notícia de que o garoto que eu gostava e estava “ficando” tinha chegado a conclusão de que eu era chata demais. Elas me diziam que não havia problema, que eu podia chorar, que não precisava ser forte, mas por algum motivo, eu não conseguia chorar. Cheguei até a pensar que havia algo de errado comigo, mas, ao mesmo tempo, minha mentalidade de menina me dizia “Eu disse a ele o que pensava, fui sincera. Fiz meu melhor”. A satisfação comigo mesma durou poucos anos, e ao crescer deixei-me influenciar por qualquer garoto que não me achasse boa, gostosa, bonita, fofa, simpática, engraçada ou extrovertida o suficiente. De fato segundo a psicologia, nossa impressão sobre nós é uma combinação de percepções internas com as externas, mas a que ponto chegamos que começamos a deixar que o que falam de nós nos defina como pessoas?
Vejo muitos relacionamentos ruins que perduram pois as pessoas dependem e não amam. Por que precisamos tanto ouvir que estamos bonitas, que somos inteligentes e capazes. Como não conseguimos tirar essa conclusão por nós mesmas? Olho para diversas mulheres e penso como elas puderam alguma vez duvidar dessas qualidades e então percebo que fiz o mesmo, diversas vezes, que aceitei ser colocada na caixinha de adjetivos que me definiam.
Senti no livro que Christian Grey é cheio de paradigmas. Ele liberta Anastásia sexualmente para que ela seja quem ela quiser, mas ao mesmo tempo a mantém sob seu total controle, ao ponto de controlar sua dieta, sua frequência na academia, e até estabelecer que ela não pode se tocar sozinha, pois todos os orgasmos dela devem pertencer a ele. Anastásia protesta diversas vezes, mas há sempre um sentimento que fala mais alto, segundo ela, o amor.
            Por que aceitamos esse amor possessivo como verdadeiro? Pois foi assim que aprendemos que ele deve ser, tanto que não entendemos em qualquer filme quando o casal apaixonado não fica junto. Não conseguimos compreender que o amor pode ser mais do que isso, que pode transcender o patamar do ter. Que o amor pode ser, principalmente, deixar partir, querer que o outro evolua, conquiste sozinho, que se descubra sexualmente, moralmente, espiritualmente, e que acima de tudo, se liberte.




FONTES:

Filme de Will Smith e Santoro tira “50 tons”do topo das bilheterias. UOL, São Paulo, 16 mar. 2015. Disponível em: <http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2015/03/16/filme-de-will-smith-e-santoro-tira-50-tons-do-topo-das-bilheterias.htm>. Acesso em: 24 mar. 2015

O livro da Psicologia/ tradução Clara M. Hermeto e Ana Luisa Martins. São Paulo: Globo, 2012.
Título original: The Psychology Book.  Vários Colaboradores. 

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