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Arnold Böcklin, pintor simbolista influenciado pelo romantismo prĂ©-rafaelita mesclava ambas as vertentes para pintar figuras mitolĂłgicas em ambientes reais. Embora nĂŁo soubesse, estava ajudando a fundar os alicerces do Clockpunk, Jungle Fantasy, Fantasia Medieval e tantos outros gĂȘneros que procuram blendar o real e o fictĂ­cio. É que para ele, o real nada mais Ă© do que uma projeção do imaginĂĄrio. Realmente (como perdĂŁo da piada paradoxal), nĂŁo hĂĄ critĂ©rio para medi-lo e mesmo fatos estĂŁo Ă  mercĂȘ das interpretaçÔes. 
Böcklin chegou a pintar cinco versĂ”es diferentes da obra e diversas personalidades histĂłricas o possuĂ­am, sendo muito popular e era comum encontrar cĂłpias em residĂȘncias na Ă©poca. Adolf Hitler adquiriu a terceira versĂŁo e o levou consigo atĂ© mesmo para o bunker onde faleceu. Lenin o pendurou na cabeceira de sua cama e Freud possuĂ­a 22 cĂłpias do quadro. NĂŁo fosse o Arcano XXII, O Louco, no TarĂŽ.

5ÂȘ e Ășltima versĂŁo do quadro.
Alguns rumores dizem que o quadro nĂŁo possuĂ­a nome no inĂ­cio; outro, no entanto, relatam que o pintor queria criar uma imagem que evocasse um profundo silĂȘncio, a ponto de um eventual observador se assustar caso batessem Ă  sua porta, como ocorre quando assistimos a um filme de terror. Seria, pelas palavras do autor, “Um Quadro para Sonhar”, comentĂĄrio que se tornaria o tĂ­tulo, mas seu mecenas, Fritz Gurlitt, teria decidido por A Ilha dos Mortos (Die Toteninsel) porque, segundo ele, seria um tĂ­tulo mais vendĂĄvel devido ao gosto da Ă©poca, o que se provou verdadeiro, dada a sua aceitação. A figura solitĂĄria que navega em direção Ă  Ilha Ă© considerada por muitos como Caronte, o barqueiro da mitologia grega que levava as almas dos mortos ao Mundo Inferior pelo preço de um Ăłbulo. Outros a consideram a prĂłpria alma rumo a seu destino final. Seja como for, muitos outros autores fizeram suas prĂłprias versĂ”es da lĂșgubre imagem. O prĂłprio Salvador DalĂ­ fez sua releitura, jĂĄ que admirava muito o quadro e tivemos atĂ© o romance de ficção cientĂ­fica Isle of the Dead, do escritor Roger Zelazny, lançado em 1969.

AlĂ©m deles, o quadro aparece em diversas cenas de obras midiĂĄticas e quase sempre a figura do protagonista visita a ilha e retorna revigorado apĂłs um fatĂ­dico encontro consigo mesmo, tornando-se exĂ­mio, perverso, mas sempre, como se diz num bom ingĂȘs, um badass. Storytellers: bem-vindos Ă  Ilha dos Mortos! 
H.R. Giger - 1977
Dentre os muitos autores que fizeram releituras do soturno quadro, nĂŁo poderia faltar o criador da estĂ©tica biomecĂąnica, Hans Ruedi Giger. Em 1977, o suíço responsĂĄvel por um dos monstros mais famosos do cinema (senĂŁo o mais) decidiu fazer suas prĂłprias releituras do quadro de Böcklin. O branco gĂ©lido criado pelo trevoso pintor e escultor se encaixa perfeitamente com a temĂĄtica da obra; haja vista que o prĂłprio xenomorfo nada mais Ă© do que uma representação natimorta do hospedeiro que o gerou. 

Na versĂŁo acima, o barqueiro Caronte “aparece” como parte da estrutura, bem nos moldes lovecraftianos de Giger, onde muitos seres se misturam num organismo Ășnico, tal como acontece com o garoto da famĂ­lia no conto The Color Out of Space (A Cor que Caiu do CĂ©u ou do Espaço, de acordo com a tradução), de H.P. Lovecraft, com a criatura amorfa de O Enigma do Outro Mundo ou com o personagem George Prufrock, protagonista-coadjuvante do arco Lifeform , publicada no Brasil em Hulk Anual 1.
A versĂŁo acima, mais ortodoxa, se assemelha mais ao Simbolismo do que ao Surrealismo, jĂĄ que as rochas nĂŁo sĂŁo biomecĂąnicas e a paisagem bucĂłlica se mescla ao inverossĂ­mil. O elemento biomecĂąnico da cena Ă© a ginecolock. Permitam explicar meu neologismo estrangeirista: Ă© que as pinturas do suíço trevoso quase sempre aludem a formas fĂĄlicas ou ginecolĂłgicas, mesclando anatomia Ă  cibernĂ©tica e a fechadura no meio da Ilha remete Ă  imagem de uma vulva. 
Tendo em vista o mito grego de Eros e Thanatos, nada mais justo do que unir a imagem da Ilha dos Mortos a uma figura sexual. NĂŁo fosse o orgasmo ser chamado em francĂȘs de la petite mort (a pequena morte).
Milo Manara - 1998
Mais tarde, foi a vez do lascivo italiano criar sua versĂŁo do quadro. Novamente, nada mais justo dada a explicação do paralelismo entre o sexo e a morte relatada no parĂĄgrafo anterior. Em julho de 1998, a histĂłria Rever as Estrelas (To See the Stars Again), publicada na Revista Heavy Metal (no Brasil, Heavy Metal Brasil, nÂș 22 - Ano 3) nos traz uma aventura do personagem Giuseppe Bergman, presente em diversas histĂłrias do autor, Ă s voltas com uma doidivana esquizofrĂȘnica perita em histĂłria da arte que revela tudo, menos o seu nome.
Ao ser confundido pela moça com Lucignolo, personagem dAs Aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, Giuseppe é incumbido da missão de tomar conta dela, no bom sentido, por um aidético com o corpo coberto por manchas de sarcoma de kaposi. A história jå se inicia com o mito de Eros e Thanatos e o moribundo pede que acompanhe a inocente devassa que não regula bem e ao mesmo tempo... não regula nada!
Possuindo apenas a roupa do corpo e um livro com diversas gravuras famosas de pintores expoentes, a moça se comporta como se estivesse nas pinturas, criando cenas hĂ­bridas de ficção e realidade como convĂ©m ao Simbolismo. DA Morte de OfĂ©lia, de John Everett Millais ao Almoço sobre a Relva (Le DĂ©jeuner sur L’herb) de Édouard Manet, a moça oscila entre sua “participação” nas obras e seu devaneio de que estĂĄ nas aventuras do boneco mentiroso e acaba por “aportar” na Ilha dos Mortos, representando a figura de Caronte. ApĂłs uma aparente morte, a moça se revigora como Ă© comum a todos os que visitam a Ilha.

Fuga de Los Angeles - 1996
John Carpenter pode ser considerado um especialista em fazer excelentes filmes B... ou ele poderia me mandar à merda por dizer isso, como fez com Rob Zombie. Lançada em 1996, a continuação de Fuga de Nova York (Escape from NY), de 1981, traz de volta nosso velho conhecido Snake Plissken, dessa vez em Los Angeles para resgatar a filha do puritano atual presidente norte-americano que se casou com Cuervo Jones, uma espécie de Che Guevara pós-moderno blendado com Bin Laden, dado seu ímpeto terrorista. Como qualquer mestre em distopia, Carpenter também é profeta!
O que ninguĂ©m percebe Ă© que a Los Angeles distĂłpica do filme Ă© mais uma representação do quadro, o que fica evidente no zoom que apresenta a arena a nĂłs espectadores no começo da trama. Plissken nĂŁo tem um Caronte particular, mas Ă© escoltado Ă  Ilha prisioneiro num tanque, um emissĂĄrio da morte. Ao fim da pelĂ­cula, como Ă© de praxe do arquĂ©tipo da Ilha, o personagem se torna alguĂ©m melhor; ao menos, encontra seu verdadeiro eu. Embora odeie ser chamado pelo sobrenome, preferindo sempre a alcunha que faz dele um badass (“Call me Snake!”), termina aceitando: “My name is Plissken”. 

Cavaleiros do ZodĂ­aco - 1987

Ikki de FĂȘnix decide ir Ă  Ilha da Rainha da Morte, local originalmente designado a seu irmĂŁo chorĂŁo, Shun, para se tornar o Cavaleiro de FĂȘnix. Tornando-se ainda mais revoltado do que jĂĄ era (pois a prova final consistia em matar seu mestre, Guilty) Ikki nĂŁo sĂł consegue a armadura, mas forma uma milĂ­cia com os famigerados Cavaleiros Negros, aspectos obliterados dos Cavaleiros de Bronze como que suas sombras, num conceito Junguiano.

Sim, senhoras e senhores! Nem os nipĂŽnicos cavaleiros de Atena ficaram de fora dessa! Quem assistiu, leu ou teve conhecimento da saga dos cinco ĂłrfĂŁos que se tornaram avatares de suas respectivas constelaçÔes sabe que cada um deles foi enviado a um lugar do mundo, fictĂ­cio ou nĂŁo, para treinar suas estapafĂșrdias tĂ©cnicas marciais e se tornar digno de vestir a armadura que representa sua constelação. 




Segundo a história, a ilha, localizada no Pacífico Sul, abaixo da Linha do Equador, é um local inóspito e vulcùnico, como convém à maioria dos locais insulares. Aqueles que vão à ilha dificilmente sobrevivem e os que o fazem retornam transmutados... pra pior!

No episĂłdio 32 do anime, A ExplosĂŁo da Ilha da Rainha da Morte (no original, Dai Bakuhatsu! Desu KwÄ«n Tƍ, lançado em 6 de junho de 1987 no JapĂŁo e em 14 de outubro de 1994 no Brasil), o Mestre Ares faz uma mandinga para liberar todas as almas dos que morreram na ilha, que entra em erupção e vai a pique, numa cena clĂĄssica, repetida em diversas obras midiĂĄticas desde A Queda da Casa de Usher, de Edgar Alan Poe.

Suehiro Maruo - 1993/2013
ResponsĂĄvel por obras como O Vampiro que Ri, Ultra Gash Inferno, publicada no Brasil como Ero-Guro, ParaĂ­so (todas pela Conrad Livros) e New National Kid (Shin Nashonaru Kiddo), nunca publicada no Brasil, seu traço caracterĂ­stico destoa bastante dos tradicionais mangĂĄ e gekiga, se assemelhando mais ao italiano (com sua sombra preta em vez do tradicional dĂ©gradĂ©) enquanto flerta com o expressionismo alemĂŁo (em suas eventuais releituras de Nosferatu) e sua pornografia agressiva passa longe do hentai, sendo seu estilo, tanto quadrinhĂ­stico quanto narrativo, chamado Ero-Guro (ErĂłtico Grotesco). 

Sua marca registrada sĂŁo os olhos – realistas – bastante diferentes da conhecida estĂ©tica nipĂŽnica (diametralmente oposta aos olhos orientais) que deixam um “rastro” de movimento.  Suehiro aproveita a nĂŁo exposição dos ĂłrgĂŁos genitais, comum Ă  pornografia japonesa, e transforma isso em um recurso estilĂ­stico, contrastando luz e sombra; figura e fundo.

 
Em A Cidade que Sucumbe (Nonresistance City - 1993), o autor apresenta uma histĂłria na TĂłquio pĂłs-guerra, em 1946.  Em meio a uma epidemia de tifo devido a tantos mortos, Hirai, um anĂŁo que atua em filmes pornĂŽs independentes “dirigidos” por um norte-americano, oferece comida, abrigo e emprego a Setsuko Wakasugi, uma mulher que desconhece o paradeiro de seu marido, soldado do exĂ©rcito japonĂȘs, e a seu filho. No decorrer da histĂłria a Ilha aparece, mas o desenrolar Ă© tĂŁo macabro, como convĂ©m Ă s histĂłrias de Maruo, que nĂŁo hĂĄ nenhuma evolução para os personagens... talvez para quem lĂȘ a histĂłria. 

The Strange Tale of Panorama Island - 2013
Com a morte do Imperador Taisho em 1926, o Japão finalmente começou a ocidentalizar-se e Hitomi, um escritor de histórias fantåsticas, sofre porque seu editor quer apenas histórias realistas calcadas no cotidiano do país jå que estas são mais vendåveis. Mas seu amigo, Genzaburo Komoda, que era a sua cara, falece, deixando sua fortuna e sua bela e jovem esposa, Chiyoko. Não por acaso, o nome Komoda significa rico, saudåvel, sortudo; aquele que desfruta de grande sucesso ou cai em abjeta miséria. Como solução para tal karma, deve usar suas habilidades de liderança para o bem da humanidade e não para a autoglorificação. Veremos a seguir que não é o que o impostor faz.
Decidido a dar o golpe, o fadado escritor exuma o cadĂĄver do amigo, retira sua aliança e seu dente postiço e arranca seu prĂłprio dente para colocar o do finado, fazendo-se passar por ele como se tivesse voltado de uma catalepsia. Tornando-se um eu que nĂŁo Ă© ele mesmo para se tornar algo que gostaria de ser, o frustrado autor usa toda a fortuna que “herda” para criar o seu prĂłprio paraĂ­so hedonista na ilha de Nakanoshima, repleto de mulheres seminuas e atores, todos trajados em indumentĂĄria greco-romana numa ambientação com objetos estratĂ©gica e geometricamente posicionados para gerar a atmosfera dionisĂ­aca. Tudo encetado no melhor estilo Panorama (um estilo especĂ­fico de arquitetura do sĂ©culo XIX), daĂ­ o nome da histĂłria. Baseado no conto homĂŽnimo de Edogawa Ranpo, pseudĂŽnimo do romancista Tarƍ Hirai; uma alusĂŁo para Edgar Alan Poe em katakana (vocabulĂĄrio de palavras estrangeiras “fagocitadas” para o alfabeto japonĂȘs em tradução fonĂ©tica).
Arrow - 2012
Em 2012 a Warner nos brinda com mais uma de suas frustrantes sĂ©ries de super-herĂłis. Arrow traz a saga de Oliver Queen, o Arqueiro Verde da DC Comics, uma mistura de Robin Hood com Batman, sĂł que sem o carĂĄter folclĂłrico do primeiro nem o carisma do segundo, que milagrosamente sobreviveu Ă  Era de Ouro dos Quadrinhos mesmo nĂŁo tendo nenhuma expressividade. Talvez por ajuda do Parallax... ou insistĂȘncia dos editores.

Na verdade nĂŁo foi Parallax, mas Hal Jordan, enquanto hospedeiro do Espectro, que ressuscitou Oliver quando este morrera, mas essa histĂłria nĂŁo nos interessa por agora. Vale lembrar que o nome da entidade galĂĄtica da DC Ă© tambĂ©m o nome do fenĂŽmeno responsĂĄvel por nossa visĂŁo em trĂȘs dimensĂ”es, jĂĄ que designa a posição aparente de um objeto a partir de dois pontos distintos, no caso, os olhos. Se Jordan jĂĄ foi Parallax, nada mais justo do que ajudar alguĂ©m cuja mira o afirma como personagem. 


Postado originalmente no portal Formiga Elétrica







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