A Ilha dos Mortos: a transmídia da obra de Arnold Böcklin.

https://www.storytellers.com.br/2017/06/a-ilha-dos-mortos-transmidia-da-obra-de.html
Arnold Böcklin, pintor simbolista influenciado pelo romantismo pré-rafaelita
mesclava ambas as vertentes para pintar figuras mitológicas em ambientes reais.
Embora não soubesse, estava ajudando a fundar os alicerces do Clockpunk,
Jungle
Fantasy,
Fantasia Medieval e tantos outros gêneros que procuram blendar o real e o fictício. É que para ele, o real nada mais é do
que uma projeção do imaginário. Realmente (como perdão da piada paradoxal), não
há critério para medi-lo e mesmo fatos estão à mercê das interpretações.
Böcklin chegou a pintar cinco
versões diferentes da obra e diversas personalidades históricas o possuíam,
sendo muito popular e era comum encontrar cópias em residências na época. Adolf Hitler adquiriu a terceira versão e o levou consigo até mesmo para
o bunker onde faleceu. Lenin o pendurou na cabeceira de sua
cama e Freud possuía 22 cópias do
quadro. Não fosse o Arcano XXII, O Louco, no Tarô.
5ª e última versão do quadro.
Alguns rumores dizem que o quadro não possuía nome no início; outro, no entanto, relatam que o pintor queria criar uma imagem que evocasse um profundo silêncio, a ponto de um eventual observador se assustar caso batessem à
sua porta, como ocorre quando assistimos a um filme de terror. Seria, pelas
palavras do autor, “Um Quadro para Sonhar”, comentário que se tornaria o título,
mas seu mecenas, Fritz Gurlitt, teria decidido por A Ilha dos Mortos (Die Toteninsel) porque,
segundo ele, seria um título mais vendável devido ao gosto da época, o que se
provou verdadeiro, dada a sua aceitação. A figura solitária que navega em
direção à Ilha é considerada por muitos como Caronte, o barqueiro da mitologia grega que levava as almas dos
mortos ao Mundo Inferior pelo preço de um óbulo. Outros a consideram a própria
alma rumo a seu destino final. Seja como for, muitos outros autores fizeram
suas próprias versões da lúgubre imagem. O próprio Salvador Dalí fez sua
releitura, já que admirava muito o quadro e tivemos até o romance de ficção
científica Isle of the Dead, do escritor Roger Zelazny, lançado
em 1969.
Além deles,
o quadro aparece em diversas cenas de obras midiáticas e quase sempre a figura
do protagonista visita a ilha e retorna revigorado após um fatídico encontro
consigo mesmo, tornando-se exímio, perverso, mas sempre, como se diz num bom ingês,
um badass. Storytellers: bem-vindos
à Ilha dos Mortos!
H.R. Giger - 1977
Dentre os muitos autores que
fizeram releituras do soturno quadro, não poderia faltar o criador da estética
biomecânica, Hans Ruedi Giger. Em
1977, o suíço responsável por um dos monstros mais famosos do cinema (senão o
mais) decidiu fazer suas próprias releituras do quadro de Böcklin. O branco
gélido criado pelo trevoso pintor e escultor se encaixa perfeitamente com a temática
da obra; haja vista que o próprio xenomorfo nada mais é do que uma
representação natimorta do hospedeiro que o gerou.
Na versão acima, o barqueiro
Caronte “aparece” como parte da estrutura, bem nos moldes lovecraftianos de Giger, onde muitos seres se misturam num
organismo único, tal como acontece com o garoto da família no conto The
Color Out of Space (A Cor que
Caiu do Céu ou do Espaço, de
acordo com a tradução), de H.P.
Lovecraft, com a criatura amorfa de O
Enigma do Outro Mundo ou com o personagem George
Prufrock, protagonista-coadjuvante do arco Lifeform ,
publicada no Brasil em Hulk Anual 1.
A versão
acima, mais ortodoxa, se assemelha mais ao Simbolismo do que ao Surrealismo, já
que as rochas não são biomecânicas e a paisagem bucólica se mescla ao
inverossímil. O elemento biomecânico da cena é a ginecolock. Permitam
explicar meu neologismo estrangeirista: é que as pinturas do suíço trevoso quase
sempre aludem a formas fálicas ou ginecológicas, mesclando anatomia à
cibernética e a fechadura no meio da Ilha remete à imagem de uma vulva.
Tendo em
vista o mito grego de Eros e Thanatos,
nada mais justo do que unir a imagem da Ilha dos Mortos a uma figura sexual.
Não fosse o orgasmo ser chamado em francês de la petite mort (a pequena morte).
Milo Manara
- 1998
Mais
tarde, foi a vez do lascivo italiano criar sua versão do quadro. Novamente, nada
mais justo dada a explicação do paralelismo entre o sexo e a morte relatada no
parágrafo anterior. Em julho de 1998, a história Rever as Estrelas (To See the
Stars Again), publicada na Revista Heavy Metal (no Brasil, Heavy Metal Brasil, nº 22 - Ano 3) nos
traz uma aventura do personagem Giuseppe
Bergman, presente em diversas histórias do autor, às voltas com uma
doidivana esquizofrênica perita em história da arte que revela tudo, menos o
seu nome.
Ao ser confundido pela moça com Lucignolo, personagem dAs Aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, Giuseppe é incumbido da
missão de tomar conta dela, no bom sentido, por um aidético com o corpo coberto
por manchas de sarcoma de kaposi. A história já se inicia com o mito de Eros e Thanatos e o moribundo pede que
acompanhe a inocente devassa que não regula bem e ao mesmo tempo... não regula
nada!
Possuindo apenas a roupa do corpo e
um livro com diversas gravuras famosas de pintores expoentes, a moça se
comporta como se estivesse nas pinturas, criando cenas híbridas de ficção e
realidade como convém ao Simbolismo. DA Morte
de Ofélia, de John Everett Millais
ao Almoço sobre a Relva (Le Déjeuner
sur L’herb) de Édouard Manet, a moça oscila entre sua
“participação” nas obras e seu devaneio de que está nas aventuras do boneco
mentiroso e acaba por “aportar” na Ilha dos Mortos, representando a figura de
Caronte. Após uma aparente morte, a moça se revigora como é comum a todos os
que visitam a Ilha.
Fuga de Los
Angeles - 1996
John Carpenter pode ser considerado um especialista em fazer
excelentes filmes B... ou ele poderia me mandar à merda por dizer isso, como
fez com Rob Zombie. Lançada em 1996, a continuação de Fuga de Nova York (Escape from NY), de 1981, traz de volta nosso velho conhecido Snake Plissken, dessa vez em Los Angeles para resgatar a filha do puritano
atual presidente norte-americano que se casou com Cuervo Jones, uma
espécie de Che Guevara pós-moderno blendado
com Bin Laden, dado seu ímpeto terrorista. Como qualquer mestre em
distopia, Carpenter também é profeta!
O que ninguém percebe é que a Los
Angeles distópica do filme é mais uma representação do quadro, o que fica
evidente no zoom que apresenta a
arena a nós espectadores no começo da trama. Plissken não tem um Caronte
particular, mas é escoltado à Ilha prisioneiro num tanque, um emissário da
morte. Ao fim da película, como é de praxe do arquétipo da Ilha, o personagem
se torna alguém melhor; ao menos, encontra seu verdadeiro eu. Embora odeie ser
chamado pelo sobrenome, preferindo sempre a alcunha que faz dele um badass (“Call me Snake!”), termina aceitando: “My name is Plissken”.
Cavaleiros
do Zodíaco - 1987
Ikki de Fênix decide
ir à Ilha da Rainha da Morte, local
originalmente designado a seu irmão chorão, Shun, para se tornar o Cavaleiro de Fênix. Tornando-se ainda mais
revoltado do que já era (pois a prova final consistia em matar seu mestre, Guilty) Ikki não só consegue a armadura,
mas forma uma milícia com os famigerados Cavaleiros
Negros, aspectos obliterados dos
Cavaleiros de Bronze como que suas sombras, num conceito Junguiano.
Sim, senhoras e senhores! Nem os
nipônicos cavaleiros de Atena ficaram de fora dessa! Quem assistiu, leu ou teve
conhecimento da saga dos cinco órfãos que se tornaram avatares de suas
respectivas constelações sabe que cada um deles foi enviado a um lugar do
mundo, fictício ou não, para treinar suas estapafúrdias técnicas marciais e se
tornar digno de vestir a armadura que representa sua constelação.
Segundo a história, a ilha, localizada
no Pacífico Sul, abaixo da Linha do Equador, é um local inóspito e vulcânico,
como convém à maioria dos locais insulares. Aqueles que vão à ilha dificilmente
sobrevivem e os que o fazem retornam transmutados... pra pior!
No episódio 32 do anime, A Explosão da Ilha da Rainha da Morte
(no original, Dai Bakuhatsu! Desu Kwīn Tō, lançado em 6 de junho de 1987 no Japão e em 14 de outubro de 1994 no
Brasil), o Mestre Ares faz uma mandinga para liberar
todas as almas dos que morreram na ilha, que entra em erupção e vai a pique,
numa cena clássica, repetida em diversas obras midiáticas desde A Queda da Casa de Usher, de Edgar Alan Poe.
Suehiro
Maruo - 1993/2013
Responsável por obras como O Vampiro que Ri, Ultra Gash Inferno, publicada
no Brasil como Ero-Guro, Paraíso
(todas pela Conrad Livros) e New
National Kid (Shin Nashonaru Kiddo),
nunca publicada no Brasil, seu traço característico destoa bastante dos
tradicionais mangá e gekiga, se
assemelhando mais ao italiano (com sua sombra preta em vez do tradicional dégradé) enquanto flerta com o expressionismo
alemão (em suas eventuais releituras de Nosferatu) e sua pornografia agressiva
passa longe do hentai, sendo seu
estilo, tanto quadrinhístico quanto narrativo, chamado Ero-Guro (Erótico
Grotesco).
Sua marca registrada são os olhos –
realistas – bastante diferentes da conhecida estética nipônica (diametralmente
oposta aos olhos orientais) que deixam um “rastro” de movimento. Suehiro aproveita a não exposição dos órgãos
genitais, comum à pornografia japonesa, e transforma isso em um recurso
estilístico, contrastando luz e sombra; figura e fundo.
Em A Cidade que Sucumbe (Nonresistance City - 1993), o autor
apresenta uma história na Tóquio pós-guerra, em 1946. Em meio a uma epidemia de
tifo devido a tantos mortos, Hirai, um anão que atua em filmes pornôs
independentes “dirigidos” por um norte-americano, oferece comida, abrigo e
emprego a Setsuko Wakasugi, uma mulher que desconhece o paradeiro de seu
marido, soldado do exército japonês, e a seu filho. No decorrer da história a
Ilha aparece, mas o desenrolar é tão macabro, como convém às histórias de Maruo,
que não há nenhuma evolução para os personagens... talvez para quem lê a
história.
The Strange Tale of Panorama Island -
2013
Com a morte do Imperador Taisho em
1926, o Japão finalmente começou a ocidentalizar-se e Hitomi, um escritor de
histórias fantásticas, sofre porque seu editor quer apenas histórias realistas
calcadas no cotidiano do país já que estas são mais vendáveis. Mas seu amigo, Genzaburo
Komoda, que era a sua cara, falece, deixando sua fortuna e sua bela e jovem
esposa, Chiyoko. Não por acaso, o
nome Komoda significa rico, saudável, sortudo;
aquele que desfruta de grande sucesso ou cai em abjeta miséria. Como solução
para tal karma, deve usar suas
habilidades de liderança para o bem da humanidade e não para a
autoglorificação. Veremos a seguir que não é o que o impostor faz.
Decidido a dar o golpe, o fadado
escritor exuma o cadáver do amigo, retira sua aliança e seu dente postiço e
arranca seu próprio dente para colocar o do finado, fazendo-se passar por ele
como se tivesse voltado de uma catalepsia. Tornando-se um eu que não é ele
mesmo para se tornar algo que gostaria de ser, o frustrado autor usa toda a
fortuna que “herda” para criar o seu próprio paraíso hedonista na ilha de Nakanoshima,
repleto de mulheres seminuas e atores, todos trajados em indumentária
greco-romana numa ambientação com objetos estratégica e geometricamente
posicionados para gerar a atmosfera dionisíaca. Tudo encetado no melhor estilo Panorama (um estilo específico de arquitetura
do século XIX), daí o nome da história. Baseado no conto homônimo de Edogawa Ranpo, pseudônimo do romancista Tarō Hirai; uma alusão para Edgar Alan Poe em
katakana (vocabulário de palavras
estrangeiras “fagocitadas” para o alfabeto japonês em tradução fonética).
Arrow -
2012
Em 2012 a Warner nos brinda com mais uma de suas frustrantes séries de
super-heróis. Arrow traz a saga de Oliver
Queen, o Arqueiro Verde da DC
Comics, uma mistura de Robin
Hood com Batman, só que sem o caráter folclórico do primeiro nem o carisma
do segundo, que milagrosamente sobreviveu à Era de Ouro dos Quadrinhos mesmo
não tendo nenhuma expressividade. Talvez por ajuda do Parallax... ou
insistência dos editores.
Na verdade não foi Parallax, mas Hal Jordan, enquanto hospedeiro do Espectro, que ressuscitou Oliver quando
este morrera, mas essa história não nos interessa por agora. Vale lembrar que o
nome da entidade galática da DC é também o nome do fenômeno responsável por
nossa visão em três dimensões, já que designa a posição aparente de um objeto a
partir de dois pontos distintos, no caso, os olhos. Se Jordan já foi Parallax,
nada mais justo do que ajudar alguém cuja mira o afirma como personagem.
Por Claudio Siqueira
Postado originalmente no portal Formiga Elétrica