a inesperada virtude da Academia

https://www.storytellers.com.br/2015/02/a-inesperada-virtude-da-academia.html
Seria pouco provável um filme, que é uma crítica sem rodeios aos grandes heróis do cinema e portanto das grandes bilheterias (coloque na bacia, homens de ferro, aranha, morcego, entre outros) e um retrato atormentado do “ser ou não ser” dos astros da indústria do cinema em busca de um sentido maior na vida, ganhar a concorrida estatueta dourada de Melhor Filme. Ainda mais sendo o diretor, e também um dos roteiristas do filme, hispânico. Seria, mas estamos falando da maior indústria do cinema que já premiou filmes como Hanibbal ou Quem quer ser Milionário? entre outros filmes “ditos esquisitos, or unusual”. Mas foi assim, na esperada 87o cerimônia do Oscar, a noite dos storytellers como anunciou a presidente da Academia, Cheryl Boone Isaacs, em seu discurso sobre os filmmakers - “who cross borders and test boundaries”.
Boyhood (Boyhood - Da
Infância à adolescência) um filme humano, gente
como a gente, com ótimos diálogos e que foi produzido em 12 anos, não teve
o reconhecimento esperado pela Academia, como teve pelo público. Mas não saiu
sem uma estatueta: a mãe solteira “que segura a onda de tudo e de todos”, é ela
quem constrói a história de Boyhood, uma heroína - cria seus filhos em meios ao
caos e consegue, enfim que eles chegam à universidade. Papel de Patricia
Arquette que de volta à telona, recebe o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante e
sobe ao palco com tempo para um engajado discurso pedindo a igualdade de
direitos para as mulheres nos EUA. Meryl Streep, fervorosa, levanta da poltrona
e apoia a colega. Todos resolvem aplaudir.
A Teoria de Tudo (The Theory about Everything), sem dúvida, é um
lindo filme. Baseado em fatos reais fez com que o grande público passasse a
amar verdadeiramente Stephen Hawking. Como mágica, o cinema nos aproxima da
ciência e mostra que afinal, não estamos tão distantes um do outro, e
cientistas também têm coração. Assim, o precoce cientista gênio com uma doença
degenerativa, na atuação impecável de Eddie Redmayne, leva a estatueta de
Melhor Ator.
Do outro lado
das poltronas estava o elenco de O Jogo da Imitação (The Imitation Game), tendo à
frente Benedict Cumberbatche, o queridinho da vez mais conhecido por sua
(brilhante) performance em Sherlock. A cinebiografia do matemático que mudou o
rumo da Segunda Guerra Mundial, Alan Turing, ao contrário de Hawking, não teve
um final feliz. Turing, era homossexual (o que era crime na época) e alguns
anos após terminada a Guerra, cometeu o suicídio. Graham Moore, o jovem autor
que escreveu o roteiro, fez sua confissão em pleno palco do tapete vermelho,
com a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado em mãos: ele confessou que ele mesmo
teve sua vida atormentada, por ser “diferente”, e como Turing, tentou o
suicídio anos atrás. Concluiu seu discurso politizado com a frase “seja estranho, seja diferente”.
Mas um dos pontos de maior comoção em Beverly Hills foi a entrega do prêmio de Melhor Canção Original
por ninguém menos que Julie Andrews. Literalmente, pode-se dizer que foi o
prêmio que deu voz à noite do 87o entrega do Oscar. Com a canção Gloria
(Glory), tema do filme Selma (Selma)
- cinebiografia do ativista social Martin Luther King e das históricas marchas
realizadas por manifestantes pacifistas até a cidade de Selma - tem até Oprah no elenco mas teve Ava DuVernay,
diretor do filme, ignorado da lista de indicados. Os músicos John Legend and Common
tiveram tempo para o discurso que foi o ponto alto da noite e foram aplaudidos
de pé: “We live in the most incarcerated country in the world”, proclamou John
Legend.
http://ow.ly/JxHgy
Uma nova comoção aconteceu na entrega da estatueta de Melhor
Atriz para Juliane Moore pela sua atuação em Para Sempre Alice (Still Alice), que conta a história sobre uma renomada
professora de linguística que enfrenta a doença de Alzheimer.
Antes de abrirem o envelope, paira no ar uma certa tensão. Juliane é linda, excelente atriz, e o tema, importante. Humano. Ponto.
Talvez, o filme que tenha levantado interrogações nesta noite, algo como, o que esse filme está fazendo aqui?
tenha sido O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel). Original e divertido, o
filme levou os prêmios para turma de criativos – make & hair, design e tal.
Assim, a turma descolada das artes, moderninhos e fãs de Wes Anderson também
ganharam espaço na tradicional cerimônia do Oscar.
E então quando o
relógio já estava chegando às duas da manhã aqui nos trópicos, Birdman ou A inesperada virtude da
ignorância, começava a levar os melhores prêmios da noite: Melhor Fotografia, Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor, Alejandro G. Iñarritu... e buuum!
Melhor Filme! Sean Penn, também ativista, politizado e tal, e que já trabalhou
com Iñarritu (21 Gramas, 2003), escancara o mood
da noite ao abrir o envelope e antes de anunciar Birdman, dispara:“quem deu o greencard para esse filho da
mãe”?
No ano que o Ocidente foi assolado com o ataque ao estúdio de
Charlie Hebdo, que a Coreia do Norte restringe as mídias sociais e ameaça o
blockbuster A Entrevista (The Interview), a Academia parece ter levado a sério mesmo
seu próprio discurso. Cheryl Boone Isaacs disse ainda na noite de ontem: “We have a responsibility that no one’s voice is silenced by
threats. A responsibility to protect freedom of expression”.