São Jorge e o Dragão - A Transmídia no Inconsciente Coletivo

https://www.storytellers.com.br/2015/04/sao-jorge-e-o-dragao-transmidia-no.html
Muita gente tem como totem o ícone de São Jorge, o “Santo Guerreiro”
que, galopando seu alazão, subjuga a figura desprezível do Dragão. Estar
“vestido com as roupas e as armas de Jorge” – um centurião romano, garoto-propaganda do credo bélico de Roma – é motivo de orgulho. Mas vamos analisar
mais atentamente esse hieróglifo da Igreja Romana.
Segundo a hagiografia¹ da Igreja Católica Romana, São
Jorge teria nascido na Lida –
atualmente situada em Israel – e era
soldado do exército do Imperador
Diocleciano. Teria morrido na Nicomédia
(hoje, Izmit na Turquia) e seus restos mortais transferidos para sua terra natal
pelo Imperador Constantino que
mandou construir uma igreja-mausoléu em sua homenagem. Considerado padroeiro de
diversas cidades ao redor do mundo e padroeiro não oficial do Rio de Janeiro – título originalmente
atribuído a São Sebastião – a figura
mítica de São Jorge, no entanto, remete a períodos históricos anteriores ao
cristianismo.
A Diáspora do Ícone
Uma das primeiras manifestações iconográficas
semelhantes de que se tem notícia data do Livro
Egípcio dos Mortos, onde uma figura desprovida de nomenclatura fere uma
serpente com sua lança.
Na Índia, Krishna subjuga a serpente antropomórfica Kaliya. Atentem para o fato de que Krishna, assim como São Jorge,
subjuga Kaliya, seu próprio dragão, pisoteando-a.
Todos os mitos que subjugam sua própria besta por intermédio da truculência
possuem um intermédio, um anteparo; por vezes, um símbolo fálico. Do ponto de
vista do gênero, o arquétipo Masculino,
Positivo, “do bem” deve submeter o Feminino,
Negativo, “do mal”. Do ponto de vista do Gênio
Humano, este deve submeter o Instinto
à Razão, que deve ser superior à Emoção.
Estes arquétipos são sempre
representados por um guerreiro, trajado em vestes bélicas, muitas vezes em uma
montaria que lhe serve de veículo. O adversário é sempre representado como uma
serpente ou figura reptílica, mas não em seu aspecto de autorrenovação, por
mudar de pele; ou de abrangência, já que seu corpo longilíneo poder envolver
qualquer objeto em circunferência, inclusive o mundo; mas por seu aspecto
rasteiro, baixo, ao revés, à mercê.
No antigo Egito, o deus Osíris trava uma batalha com Seth, a serpente do deserto, que o
castra e esquarteja, lançando seus pedaços ao longo do Rio Nilo. Osíris
representa o Sol, o aspecto masculino e viril. Seus pedaços são lançados ao
longo do leito de um rio, sinuoso como qualquer serpente. Ísis, deusa da fertilidade, chora a morte de seu consorte e suas
lágrimas se transformam em abelhas, não só porque polinizam flores mas porque,
em seu voo, formam a gestalt (forma)
de lemniscatas, o signo do infinito. Chamo de signo em vez de símbolo, devido à
Lógica dos Signos e Símbolos,
preconizada por C.S.Peirce e Ferdinand de Saussure .
Na mitologia grega o herói Belerophonte², filho de Poseidon, cavalga um pégaso (cavalo alado) e subjuga a Quimera. O pégaso mesmo teria nascido
da morte de Górgona por Perseu, emergindo do mar tal qual Afrodite o fez após a castração de Urano por Cronos, que atirou seu falo ao Oceano
(também um Titã). Logo, Pégaso representa também um arquétipo feminino. Com
sua ajuda, Belerophonte pôde não só
derrotar a Quimera, mas vencer as Amazonas. Segundo o professor Junito de Souza, Zeus o nomeou “o portador do trovão e do raio”, o que faz
Belerophonte próximo de Thor e Xangô.
O professor também menciona que:
“O simples cavalo figura tradicionalmente como a impetuosidade dos
desejos. Quando o ser humano faz corpo
com o cavalo, torna-se um monstro, o Centauro,
identificando-se com os instintos animalescos. O cavalo alado, muito pelo
contrário, simboliza a inspiração criadora sublimada e sua elevação real.” O
cavalo de São Jorge não possui asas, não apenas para que a única figura
inverossímil da imagem seja apenas o dragão, conferindo-lhe um ar de pouca
credibilidade, e portanto demoníaco, mas também porque “São Jorge” é uma versão
de Belerophonte castrado de sua subjetividade. “Belerophonte” significa Fonte de Poder. Mais tarde,
acrescentou-se à lenda que São Jorge matara o Dragão em uma batalha na lua,
plagiando a “cena” em que o herói grego sobe ao Olimpo.
Na mitologia
Celta, Thor enfrenta Jormungand, a serpente que envolve o
mundo. Na ilustração abaixo, tirada de uma história em quadrinhos, após sair
muito maior de sua casca, Jormungand pode envolver o mundo, até seu focinho
alcançar sua cauda, tal qual Ouroboros.
Thor, assim como Belerophonte e seu pégaso, é o portador do trovão e do raio,
simbolizados por seu martelo, Mjolnir.
A diferença é que, tanto Marduk³ quanto Shiva subjugam a famigerada Serpente
através da vontade, não pela coerção ou pela força bruta. Na Índia, Shiva, o Destruidor (ou Transformador) possui a Serpente calmamente
enroscada em torno de seu pescoço, enquanto Marduk jaz tranquilo tendo a seus pés a dócil Ti´âmat.
Ti´âmat é a Deusa Dragão do Caos
e das Trevas; o Abismo, as águas salgadas, mas da à luz o Mundo. Mistura-se à
Apsu, as águas doces, e resgata sua completude, já que havia sido dividida pela
lança de Marduk.
Em algumas poucas versões, Krisna
chega a aparecer em harmonia com a
Serpente:
O mítico “São Jorge” é, na
verdade, uma mimésis de Belerophonte, montado num cavalo subjugando sua própria
Quimera. O arquétipo do homem dominando a besta deu lugar a um mito de coerção.
Não esqueçamos que a palavra “quimera” derivou para um adjetivo que designa
sonhador, fantasista, sem fundamento, ilusório, utópico. Matar o sonho é castrar
a subjetividade. E como subjetividade não pode faltar para nós, Storytellers,
vamos às versões pop do mito, que mostraram o arquétipo de modo quase
imperceptível e evocaram-no do inconsciente coletivo do grande público de forma
praticamente subliminar.
Transmídia Arquetípica
As versões pop do Mito
Mesmo nas formas mais sutis, o arquétipo de São
Jorge e o Dragão está presente. A figura mais próxima ao ser humano possui
sempre um aparato bélico enquanto sua besta particular se encontra sempre
desprovida de armamento e o que faz dela um perigo é ela própria.
Muitas vezes, o herói não foi preparado para aquela missão, e
seu dragão particular aparece como um deux
ex machina em sua saga para confrontar-lhe de uma forma que nem o seu arqui-inimigo
algum dia fez. Vamos aos casos mais conhecidos:
Ultraman x Godzilla- Ao fazer contato com uma entidade superior, um indivíduo se
torna um robô de 50 metros de altura nas cores vermelho e cinza (as mesmas de
São Jorge) para enfrentar criaturas gigantes e medonhas, verdadeiras quimeras, híbridas de várias espécies para formar um amálgama bestial. Não raro, tinham
formas reptílicas. A mais famosa delas, embora não faça parte do universo de Ultraman é Godzilla, único personagem que conseguiu alcançar a hegemonia de
protagonista personificando um dragão. Seu genérico, Spectreman, em um episódio chega a enfrentar a Salamandra, que cuspia fogo. Precisa de mais?
Na foto, um confrade de Ultraman, Ultraseven.
Superman x Apocalypse- Todos reclamavam que o Super-Homem era um semideus e que
não poderia jamais se dar mal pra valer em uma estória, o que fazia com que o
personagem estivesse gradativamente perdendo sua popularidade. Para por em
xeque sua invulnerabilidade, sua editora, a DC Comics, lançou mão de um deus ex machina para tirar o
protagonista da mesmice. Assim, Doomsday, como é chamado nos EUA, sai
da terra com uma das mão atadas e desce o braço no Super, literalmente com uma mão nas costas. O nome verdadeiro
do Super-Homem não é Clark Kent, seu nome adotivo, mas Kal El. “El” vem das letras hebraicas Aleph
e Lamed e quer dizer “do Céu”, como
seu correlato árabe “Al”, como em Alá,
o Celestial.
Batman x Bane- Mesmo o soturno personagem, que nada tem de celestial
tem um quê de São Jorge. Batman possui um aparato bélico de ponta, embora
não letal, pois, assim como Jorge, é um paladino da justiça. Mas o que ninguém
esperava é que seu dragão não seria seu zênite, Coringa, mas um brutamontes criado de última hora. Pensando bem,
Bane personifica bem mais o dragão. Embora não tenha aparência reptílica, sua
força bruta o aproxima da imagem de besta, e sua história o faz emergir de um
ambiente infernal, que o obrigava a rastejar (viver de forma subserviente),
tanto na HQ quanto em sua versão para as telonas. De quebra, seu poder vem do
anabolizante que tem o sugestivo nome de Veneno. Cobaia de um experimento por ter sido condenado, ainda no ventre, por ser o filho homem de
um rebelde revolucionário, Bane pode injetar o dito anabolizante a hora que bem
entender, aumentando sua massa muscular consideravelmente e o imunizando contra
a dor.
Batman x Crocodilo- Crocodilo (ou Killer Croc, no original), ao contrário do Lagarto, da Marvel, que veremos a seguir, já nasceu com a aparência reptílica. Abandonado por seus pais por esse motivo, teve que se virar pra viver “como manda o dia a dia,” tornando-se gangster no início de “carreira.” Tendo sofrido bullying na época em que ainda se chamava zoação, Croc quase matou seu algoz juvenil o que o levou a um reformatório. Já vimos este estória muitas vezes, inclusive – e principalmente – na vida real, não é, Storytellers? Mais uma vez o Dragão foi admoestado e respondeu à altura. À medida que se tornava mais velho, seu ódio pela humanidade crescia, bem como sua aparência bestial. Algo próximo do(s) personage(ns) Dr. Jekyll & Mr. Hyde, dA Liga Extraordinária. Oops! Spoilers...
Homem-Aranha x Lagarto- Quando o Dr. Curt Connors inventou sua fórmula reparadora baseado em seu estudo com répteis e sua autotomia (capacidade de regenerar um membro amputado), para regenerar seu braço perdido, não sabia que isso o faria mudar para uma forma humanoide reptílica conhecida a partir de então como Lagarto. A metamorfose para um “dragão” se dá a partir de um médico – um doutor – enunciando a perda da Razão.
Alien x Predador- Ainda que ambos tenham traços reptilianos, a figura do
Predador nos é mais humana: dois braços, duas pernas, domínio do polegar
opositor, postura ereta, vestuário, linguagem articulada... já o Alien nos
lembra vários bichos, sempre rastejantes, hora reptílicos, hora insectoides.
Não possuem línguagem articulada, cultura, roupas e se comportam como uma colmeia. É
novamente a razão contra o instinto; a tecnologia contra a natureza.
Os Heróis de Caverna do Dragão x Tiamat- Os heróis de Caverna
do Dragão, cartoon de grande
sucesso nos anos 1980, tinham como zênite o famigerado Vingador, que montava, não um cavalo alado, já que era ele que
possuía asas. Tanto que ficava a dúvida: se o Vingador abrisse as pernas, o
cavalo cairia?
Brincadeiras à
parte, não é essa visão degenerada de Belerophonte que nos interessa, mas Tiamat, o dragão de cinco cabeças, que
tornou o mito mundialmente conhecido, embora quase ninguém saiba que ele possui
seu próprio São Jorge, Marduk.
O cartoon foi inspirado no RPG Dungeons
& Dragons que nos apresenta Tiamat em sua versão mais fiel, como uma
mulher:
Em muito ela nos lembra as versões múltiplas de Kaliya.
O cristianismo, como religião
patriarcal e consequentemente falocrática imprimiu na psique ocidental uma
noção hierárquica vertical. O detentor do poder deve ostentar um cetro que
representa seu poder coercivo, consequentemente castrador. Osíris, ao morrer no
deserto, tem seu falo arrancado por seu invejoso irmão Seth, enquanto, na
mitologia grega, Urano é castrado pelo titã Cronos por ter dado origem, com sua
criatividade, ao universo.
Cronos (tempo) derivou para
cronologia, crônica, etc. Seguindo a lógica de que “tempo é dinheiro”, qualquer
um que dedicar seu tempo útil à arte, ao sentimento e à contestação deve ser
rapidamente subjugado. Sob esse raciocínio, todos caçam um monstro que só
existe em seus sonhos.
Vale lembrar que a China alcançou o segundo PIB mundial tendo como ícone o famigerado Dragão; tão enaltecido por eles em suas festividades que em muito lembram o nosso “Bumba meu Boi”. Parafraseando Djavan: “São Jorge, por favor, liberte o Dragão!”.
NOTAS:
1- Hagiografia- Ramo da História responsável por catalogar a vida de santos e beatos, além de suas virtudes supostamente “heróicas.” É uma prática mais comum na Igreja Católica Romana, que a considera uma ramificação da História da Igreja.
O termo deriva do grego hagios, santo; e graphía, escrever. Originou-se por volta do século XVII, alegando ter como objetivo catalogar os diversos escritos a respeito dos santos. Autenticando textos não necessariamente históricos, acabou por repaginar deuses pagãos convertendo-os em ícones de devoção.
2- Belerophonte, tal qual Caim, matou seu irmão, daí o seu nome "aquele que matou Belero", segundo algumas fontes. Após ter matado a Quimera sem dificuldade, tentou (tal qual Ícaro), voar ao Olimpo, "fato" que deu origem à lenda de São Jorge combatendo o Dragão na Lua, já que esta estaria no céu. No entanto, foi amaldiçoado por Zeus, que enviou uma vespa para que picasse o Pégaso. Atena tornou o chão macio, mas Belerophonte, aleijado, passou o resto de seus dias coxo, peregrinando atrás de seu alazão alado.
(Fonte: Mitologia Grega, Volume I; Junito de Souza Brandão - Editora Vozes)
3- Marduk- dividiu ao meio Ti´âmat, a “Deusa Dragão do Caos e das Trevas.” De suas lágrimas surgiram os rios Eufrates e Tigre e de seu corpo formou-se a humanidade. Esse “feito” marca a passagem do matriarcado para o patriarcado. De forma semelhante, Apolo matara Píton, ato do qual derivou o Oráculo de Delfos, que abrigaria as Pitonísias, primeiras Prostitutas Sagradas da Grécia Antiga, tão bem representados no filme "300."
(Fonte: Androginia, Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade; June Singer; Editora Cultrix)
Vale lembrar que a China alcançou o segundo PIB mundial tendo como ícone o famigerado Dragão; tão enaltecido por eles em suas festividades que em muito lembram o nosso “Bumba meu Boi”. Parafraseando Djavan: “São Jorge, por favor, liberte o Dragão!”.
NOTAS:
1- Hagiografia- Ramo da História responsável por catalogar a vida de santos e beatos, além de suas virtudes supostamente “heróicas.” É uma prática mais comum na Igreja Católica Romana, que a considera uma ramificação da História da Igreja.
O termo deriva do grego hagios, santo; e graphía, escrever. Originou-se por volta do século XVII, alegando ter como objetivo catalogar os diversos escritos a respeito dos santos. Autenticando textos não necessariamente históricos, acabou por repaginar deuses pagãos convertendo-os em ícones de devoção.
2- Belerophonte, tal qual Caim, matou seu irmão, daí o seu nome "aquele que matou Belero", segundo algumas fontes. Após ter matado a Quimera sem dificuldade, tentou (tal qual Ícaro), voar ao Olimpo, "fato" que deu origem à lenda de São Jorge combatendo o Dragão na Lua, já que esta estaria no céu. No entanto, foi amaldiçoado por Zeus, que enviou uma vespa para que picasse o Pégaso. Atena tornou o chão macio, mas Belerophonte, aleijado, passou o resto de seus dias coxo, peregrinando atrás de seu alazão alado.
(Fonte: Mitologia Grega, Volume I; Junito de Souza Brandão - Editora Vozes)
3- Marduk- dividiu ao meio Ti´âmat, a “Deusa Dragão do Caos e das Trevas.” De suas lágrimas surgiram os rios Eufrates e Tigre e de seu corpo formou-se a humanidade. Esse “feito” marca a passagem do matriarcado para o patriarcado. De forma semelhante, Apolo matara Píton, ato do qual derivou o Oráculo de Delfos, que abrigaria as Pitonísias, primeiras Prostitutas Sagradas da Grécia Antiga, tão bem representados no filme "300."
(Fonte: Androginia, Rumo a uma Nova Teoria da Sexualidade; June Singer; Editora Cultrix)
Postado originalmente no blogue Cinegnose.
Por Claudio Siqueira