A fogueira mudou, mas nós ainda contamos histórias como antigamente

Aviso: Boa parte do texto foi construído a partir do "Guia Completo do Storytelling", de Fernando Palacios & Martha Terenzzo. Aos interessados, recomenda-se a leitura.

“Há histórias que são narradas muitas vezes. Algumas são contadas às crianças. São relatos que descortinam a história da tribo, o que é bom para comer, o que não é. Contos para criar cautela.

Há histórias contadas exclusivamente para mulheres, em uma linguagem particular, a qual jamais é ensinada às crianças do sexo masculino e os homens mais velhos são sábios demais para aprender. Tais relatos nunca são narrados aos homens.

Há histórias contadas apenas entre os homens, na cabana, sob a escuridão da noite. Histórias grosseiras, como a do lagarto que perdeu seu membro viril ou a do trapaceiro Malabayo, que vendeu fezes de macaco para o Rei Leão, dizendo-lhe se tratar da alma da lua.

Há histórias contadas entre todos os membros da tribo, durante os festivais ou nos banquetes: a da rocha que saltava, a de como surgiu fogo e milhares de outras.

Histórias escabrosas e histórias magníficas que são narradas e ouvidas muitas e muitas vezes.”


Esse é o começo de “Contos na Areia”, da série de quadrinhos Sandman, de Neil Gaiman. Na história, um jovem caminha com seu avô por um deserto, logo após ser circuncidado. Ele está prestes a ouvir a história que o tornará verdadeiramente um homem para sua tribo. Apesar de fictícia, a trama criada por Neil Gaiman não deixa de ter muitas semelhanças com a realidade., não apenas levando em consideração culturas exóticas e povos primitivos para nossa sociedade, mas também pensando em um reflexo comportamental que, mais do que atual, parece hereditário à natureza humana. Desde antes de poder escrever, o homem já contava histórias. Mas por quê? Por que continuamos desde a pré-história a contar histórias? A resposta é muito simples: para passarmos conhecimento e ensinarmos lições.

Segundo o romancista inglês E. M. Forster: “as histórias são imensamente antigas, elas remetem os tempos neolíticos, talvez paleolíticos (...) A audiência primitiva era inquieta, amontoada ao redor da fogueira, cansada com a luta contra o mamute ou o rinoceronte lanoso, e só continuava acordada com o suspense: o que aconteceria em seguida?”

Na teoria do Paradigma Indiciário, defendida pelo historiador italiano pioneiro no estudo da micro-história, Carlo Ginzburg, vemos que o ser humano começou a contar histórias a partir de indícios: toda vez que um ancestral via uma pegada no chão, significava que algum animal tinha passado por ali. Os ancestrais passavam esse tipo de comentário de um para o outro. Alguém contava o que descobriu, como fez pra conseguir caçar um alce ou para escapar com vida de um encontro com um leão.


Para muitos outros teóricos, a arte de contar histórias surgiu como forma de o ser humano não depender mais da evolução biológica. Quando alguém inventou a roda, por melhor que fosse a ideia, ela poderia desaparecer junto com seu inventor. Então, para que a próxima geração não tivesse que inventar a roda novamente, o inventor contava uma história sobre seu processo de criação. Assim as próximas gerações poderiam partir dessa invenção e criar a carroça.

Um bom exemplo de lição que chegou à atualidade graças a uma boa história é a cerveja. Uma história que foi encontrada na Epopéia, uma transcrição das lendas orais sumérias em tábuas de argila que datam da época do final da era glacial. Sua estrutura é composta por uma grande história que engloba histórias menores. Em uma dessas histórias, encontram-se dois irmãos disputando o afeto do pai. Cada um prepara um presente de aniversário. Enquanto um viaja o mundo atrás de grandes tesouros para encher um baú, o outro começa a arar a terra. Toda vez que o primeiro irmão retorna de viagem com um novo tesouro, o segundo está em uma etapa de produção: plantar, regar, colher, misturar, deixar fermentar... Quando chega o grande dia, o pai olha os dois presentes: um baú cheio de tesouros e uma caneca de uma bebida dourada, borbulhante que ele acha curiosa e não resiste em provar. O pai dá um gole e se sente bem, em seguida toma o restante da caneca em um só gole, fica alegre e se esquece do presente do outro filho. De acordo com o autor Tom Standage no livro História do Mundo em 6 copos “o símbolo da escrita cuneiforme para a cerveja quase não é reconhecível como formato de jarro. Mas pode ser visto, por exemplo, em tabuletas que narram a história de Enki, (...) no momento em que ele prepara uma festa para seu pai. Deve-se admitir que a descrição do processo da cerveja é algo obscuro. Mas os passos são reconhecíveis, o que significa que a receita mais antiga do mundo é a da cerveja.”


Com a passagem do tempo e as transformações sócio-culturais da humanidade, o “contar histórias” mudou, já que as lições a serem passadas e ensinadas também mudaram, juntamente com os meios de comunicação. Não precisamos mais contar histórias para saber como produzir a roda ou para continuar a produzir cerveja.  E não nos reunimos mais ao redor da fogueira para contar nada que seja vital à nossa sobrevivência ou uma nova descoberta que precisa ser passada adiante. Nas duas últimas décadas do século 20, a automação da alta tecnologia impulsionou ainda mais o surgimento de novas formas de diálogo, especialmente no universo digital. A evolução midiática nos trouxe abundância e facilidade ao acesso a informação. Entretanto, essa abundância de informação e a enorme diversidade de formas de conversação nos meios de comunicação nos leva à escassez de algo muito precioso: atenção.

Em 1971, o economista americano e ganhador do Prêmio Nobel da Economia Herbert Simon observou que a quantidade de informação produzida pode continuar crescendo, mas a quantidade de atenção humana é limitada.  Segundo ele “uma riqueza de informação cria uma pobreza de atenção e a necessidade de alocar a atenção eficientemente entre uma superabundância de fontes de informação que pode consumi-la.” Assim sendo, o rápido crescimento do volume de informação com que lidamos no dia a dia gera a escassez de nossa atenção. E, na medida em que a maioria dos países mais ricos migra da economia da informação para serviços, o tempo e a atenção tornam-se tão valiosos quanto dinheiro.

A missão de cativar atenção está cada vez mais difícil. Para que uma pessoa preste atenção em algum tipo de comunicação, é preciso que ela tenha satisfação nos níveis de necessidades cognitivas, avaliativas e afetivas. E a resposta sobre como conseguir isso pode ser encontrada na neurociência.

Para o Dr. John Medina, em seu livro Brain Rules (em inglês), existem três tipos de estímulos que geram atenção:

Ameaça de morte: nossa necessidade de sobrevivência;
Sexo: conteúdo sexual remete à nossa necessidade de reprodução para preservação da espécie;
Emoções e necessidades: tudo aquilo que nos faz humanos.

Graças ao processo evolucionista ao qual passamos, temos tendência em prestar atenção à narrativas e informações ligadas a esses três estímulos, geralmente presentes em boas histórias. A oxitocina é um hormônio produzido pelo hipotálamo e armazenado na neuroipófise posterior que tem função de promover apego e empatia entre pessoas e produzir parte do prazer do orgasmo. Ela também é produzida quando acreditamos em algo, quando estamos confiantes, quando demonstramos algum tipo de generosidade e ainda quando motivamos a cooperação entre os pares. Sendo assim, o “contar histórias” continua relevante desde a pré-história para conquistar a atenção cada vez mais escassa da sociedade atual muitas vezes por meio de empatia. Ou seja, por causa de um processo evolutivo que começou lá atrás, quando nem possuíamos a Escrita, hoje continuamos dependentes do “contar histórias”. Se antes precisávamos passar lições para que não se perdessem com o tempo, hoje temos acesso tão fácil à informação que nossa necessidade mudou. Ainda precisamos passar lições, mas nossa demanda maior é pela atenção que o “contar histórias” consegue atrair. A informação não mais se perde. Fica guardada em universos digitais. O que se perde é a atenção. Ou melhor, o que não se consegue atingir.


Com esse pensamento, e a crescente valorização do commodity que se tornou a atenção do público, o “contar histórias” é uma ferramenta cada vez mais visada no mercado. As lições que histórias ensinavam, passaram de relatos de caça e invenções, a pontos de vista político e socioculturais até finalmente ensinarem consumidores como marcas e produtos se encaixam em seus estilos de vida.

Muitas vezes “contadores de histórias” da atualidades dizem que sua arte é basicamente a mesma dos tempos mais primitivos, quando homens e mulheres se juntavam ao redor de fogueiras para ouvir histórias que tanto entretinham quanto explicavam, dando ordem e razão a um universo que parecia fortuito e incompreensível. E em teoria não deixam de estar certos. Sua missão continua sendo a de ensinar lições e cativar atenção. O “contar histórias” de hoje é tão importante quanto de antigamente, mas passou por adaptações às novas lições e necessidades do homem. O “contar histórias” virou “Storytelling”, escrito assim mesmo, com “S” maiúsculo. Uma ferramenta que pode ajudar indivíduos e empresas a sobreviverem na sociedade e no mercado, ao invés de na selva como antigamente. Como antigos líderes tribais, storytellers podem ensinar valiosas lições para quem escutar suas histórias. Podem ensinar lições sobre diferentes culturas, pontos de vista políticos, tendências econômicas e comportamentos sociais, por exemplo. Mas também podem ensinar coisas ligadas ao consumo de produtos e serviços para determinados consumidores, a organização de empresas para seus funcionários e passar conceitos para sua audiência. Vamos sempre contar histórias, mas nossa fogueira mudou. Entender isso é o primeiro passo para entender qual a importância de “Storytelling” no mundo de hoje. E a importância de “Storytelling” é uma boa lição para se aprender.



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