A ESTRANHA PARTE DE VOCÊ



Monica Karr nasceu de parto normal e na escola nunca foi 0 nem dez, levou tudo na base do 7,0. Faculdade, bem no meio da lista, nem em baixo nem no topo. Não era o tipo de parar o trùnsito, mas nunca passou despercebida. Nada extravagante acontecia na vida da jovem, nada fora do comum, e ela gostava assim. Virou escritora meio que sem querer, na verdade ela queria mudar tudo aquilo, palavra após palavra procurando por um grande acontecimento que mudasse aquele café com leite, nem claro nem escuro, com cara de boteco sem gosto nenhum, que ela chamava de vida.

Madrugada de sĂĄbado pra domingo e Ășnica luz ligada vinha do computador, o cafĂ©, servido em copo da starbucks mas feito em casa, forte e morno, a janela aberta pra enganar a claustrofobia e quem sabe aumentar um pouco a sensação de espaço do seu apartamento. MĂŁo no rosto, olhando pro computador e pensando que suas palavras eram tĂŁo sem graça quanto um pĂŁo frio com manteiga de pouca qualidade.

- Para de reclamar... e pensa menos, ninguém quer saber do teu colegial, era melhor ter tirado zero naquela prova de matemåtica, a história seria mais interessante.

Karr ouviu as palavras mas se recusou a acreditar, não ouvia a voz de Joana desde os quinze anos, quando as duas brigaram por causa de uma prova de matemåtica. Passou a mão no rosto de novo, tomou um gole do café e tentou voltar a escrever.

- Sério, nem teu personagem consegue tirar uma nota maior que 7,0? Ninguém quer saber sobre um nerd nota 7.0.

Monica, lembrou dos remédios, escondidos atrås dos produtos de higiene no armårio do banheiro, pensou nas datas de vålidade que jå deviam ter se expirado desde a casa de seus pais.

Vodka! Sim, a vodka nĂŁo estava vencida. Rodou a cadeira de escritĂłrio com um leve impulso com as duas mĂŁos apoiadas na mesa, como sempre fez desde que brincava no escritĂłrio do pai. Levantou, andou apenas alguns passos ao redor da cama para alcançar a geladeira, pegou a garrafa de vodka no congelador e tomou o caminho do volta, mas parou antes do primeiro passo, olhando para cama como quem vĂȘ um fantasma. Joana sentava na cama, de saia e com um travesseiro no colo. O tempo nĂŁo a afetou, ainda tinha os mesmos 12 anos de idade que sempre teve.

- Oi!

- Oi? Como assim oi? O que vocĂȘ estĂĄ fazendo aqui? Me livrei de vocĂȘ faz dez anos. Volte pro lugar de onde veio. - respondeu Monica enquanto pegava o copo do cafĂ© e servia uma dose generosa.

- Pois Ă©! VocĂȘ se livrou mesmo de mim, nĂŁo foi? Mas eu te perdoo...

- me perdoa? Como assim? ... quer saber, vocĂȘ nĂŁo existe, Ă© sĂł a minha cabeça... de novo...

- me diz uma coisa, sĂł me responde uma pergunta e eu vou embora.

- tĂĄ...

- como estĂĄ a sua vida depois que vocĂȘ "se livrou de mim"?

- Como assim? EstĂĄ Ăłtima! Eu durmo a noite, nunca mais tive problemas na escola, as pessoas nĂŁo dizem mais que eu sou louca. Minha vida Ă© Ăłtima sem vocĂȘ! Pronto, respondi, agora vai embora...

- TĂĄ bom, eu vou, mas antes me diz outra coisa... como Ă© que estĂŁo os seus textos depois que eu fui embora?

- meus textos? VocĂȘ nĂŁo tem nada com meus textos... some daqui! AGORA!

- Fica calma, assim, gritando sozinha nesse apartamento deprĂȘ, todo mundo vai achar que vocĂȘ Ă© louca, sabia?

- Culpa sua! De novo, a culpa Ă© sua, amanhĂŁ nĂŁo vou poder nem olhar na cara dos meus vizinhos...

- Moni, presta atenção, olha pra esse cara, esse tal de JoĂŁo... que histĂłria mais sem graça, um taxista que nĂŁo dirige nem bem, nem mal, que fica o dia todo contando as fofocas que escuta que no tĂĄxi, nĂŁo tem nenhuma paixĂŁo, nenhum grande sonho, atĂ© o carro do cara Ă© um qualquer... NinguĂ©m quer saber de uma histĂłria dessas... e vamos combinar que depois de mim a sua histĂłria foi bem assim... nota 7... nem zero, nem 10, nem nada, tudo com vocĂȘ Ă© morno, atĂ© o seu cafĂ©... mas fui eu aparecer que vocĂȘ pegou a vodka, mudou o a rotina e a sua histĂłria ficou boa...

- Agora vocĂȘ Ă© escritora? SĂł faltava essa...

- Ou vocĂȘ aprende que a historia sĂł fica legal quando o cara nĂŁo consegue entrar pela porta da frente e tem que pular a janela ou nĂŁo vai mais sair do caixa da livraria para as estantes...

- Do que vocĂȘ estĂĄ falando?

- Olha aqui, vocĂȘ sempre quis escrever... e atĂ© agora o mais perto disso que chegou foi gerente de livraria... suas histĂłrias sĂŁo chatas porque vocĂȘ tem medo de falar das coisas estranhas, daquelas que acha que ninguĂ©m vai gostar, das tuas manias...

- Semana passada eu postei no blog sobre comer leite condensado direto da latinha... viu como vocĂȘ tĂĄ errada?

- E esse leite condensado, ele te fez esquecer um coração partido?

- NĂŁo...

- Ele te fez lembrar da sua mĂŁe morta ou do seu pai violento?

- credo! NĂŁo... minha mĂŁe estĂĄ viva e meu pai Ă© um anjo...

- Ninguém é santo... o leite condensado salvou a vida de alguém ou te deixou doente no hospital?

- NĂŁo!

- EntĂŁo foi chato... todo mundo come leite condensado o tempo todo, se o seu leite condensado nĂŁo Ă© diferente, Ă© chato... vocĂȘ jĂĄ escreveu sobre a gente? Ou publicou alguma coisa do nosso diĂĄrio?

- NĂŁo, nem vou! VocĂȘ Ă© louca e eu quero que vocĂȘ vĂĄ embora...

- Ok, se vocĂȘ nĂŁo quer ajuda, eu vou...
Monica sentou na frente do computador enrijecida por uma mistura saudosa e angustiante de raiva, medo e inspiração, serviu mais uma dose de vodka e começou a escrever sem nem mesmo ler as próprias palavras...

Um ano depois, Monica Karr estava trabalhando em uma livraria, sentada na cadeira olhando ao redor e assinando livros, sempre com a frase "a vida nĂŁo Ă© uma prova, Ă s vezes tirar 0 dĂĄ uma histĂłria mais interessante do que tirar 10"

A histĂłria de Joana, a amiga imaginĂĄria de 12 anos que nunca envelheceu, de uma escritora sem talentos, virou um bestseller traduzido em 4 idiomas e Monica, finalmente descobriu que para contar uma boa histĂłria era preciso ter coragem de expor o que mais te incomoda.

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