Quem já jogou o RPG Diablo 3 percebeu que ele tem uma estrutura meio peculiar para histórias... são 4 atos. Os atos são as divisões da sua história e cada parte pode marcar uma virada ou um movimento para um novo rumo da narrativa.
Tradicionalmente a gente aprende que uma história tem 3 atos que representam respectivamente seu começo, meio e fim. Quando os games começaram a desenvolver melhores e mais profundos plots eles passaram a emular um pouco do storytelling cinematográfico que havia ressaltado essa estrutura graças ao paradigma de Syd Field - que seria formado pela Apresentação, a Confrontação e a Resolução.
Porém a indústria de games começou a entender melhor a sua própria forma de contar histórias a partir da década de 90 e claro, a Blizzard foi uma das empresas que saiu na frente com a estrutura de Warcraft III Reign of Chaos (inclusive, se vocês lembrarem ela narra a história da guerra usando a mesma forma que G.R. Martin usa nos livros das Crônicas de Gelo e Fogo, por perspectiva e não por capítulos). Agora com o Diablo 3 a empresa quebra novamente o "paradigma" e apresenta um jogo em 4 atos.
"A história do novo jogo passa-se depois de vinte anos dos acontecimentos que marcaram o fim de Diablo II. Os guerreiros finalmente derrotaram o mal, mas quando um cometa cai na Terra exatamente no lugar onde Diablo foi confinado, os guerreiros são novamente convocados para defender a humanidade contra o novo inimigo" - Wiki
Você tem 5 classes de personagens básicas para começar o jogo: O Bárbaro (meu preferido), o Caçador de demônios, o Arcanista, o Feiticeiro e o Monge - também presentes na versão feminina. E cada um deles é um guerreiro predestinado, oriundos de uma raça chamada Nephalem com poderes capaz de lutar contra o maior de todos os males, Diablo.
O Ato I é uma introdução, não apenas a história, mas também a jogabilidade. É onde você saiu do ambiente comum do personagem rumo ao desconhecido. Ao mesmo tempo que investiga a queda da estrela o player conhece dois personagens principais: Léa e seu tio Deckard Cain. Vejam a introdução com os dois abaixo:
Após conhecer alguns aliados e mentores no final do primeiro ato o player descobre que a estrela caída é na verdade um homem (não vou dar spoilers) Tyrael e começa a seguir a trama dos senhores do inferno que estão enganando o povo, o primeiro é Belial em Caldeum. Esta é a parte da história aonde você passa a conhecer a trilha do verdadeiro inimigo e quais métodos ele tem usado para conquistar seus objetivos.
É interessante fazermos um comparativo aqui com a clássica jornada do heróis, ela apresenta a figura do mentor como um personagem que acompanha-o em sua jornada, mas quando adaptamos isso para o storytelling interativo dos games podemos levar em conta vários mentores sendo os NPC's que auxiliam o jogador com itens, lembranças, habilidades e outras coisas.
No Diablo 3 Deckard Cain é um tipo de mentor por um tempo, depois Léa e Tyrael exercem esse papel em momentos alternados. Além de outros personagens que você encontra até o final do game.
O Ato III seria o final de toda história, a resolução. Se levarmos em conta apenas a história do jogo, ela poderia, sim, ser resumida e acabar por aqui e já teria um jogo extenso e bacana. Mas voltamos pro ponto que jogos não são filmes nem literatura, são uma forma nova e interativa de contar histórias... você não quer apenas se envolver em uma jornada heroica, você quer ver seu personagem evoluir até poder dizimar inimigos com o piscar dos olhos, ainda mais em um RPG com mecânica de hack and slash.
Aqui a Blizzard acerta novamente, te dando essa oportunidade de evolução. Enquanto a história segue, após a queda de Belial, o personagem vai encontrando desafios maiores com recompensas mais interessantes. Armaduras, armas e a oportunidade de evoluir o seu próprio Ferreiro e Joalheiro para aumentar os poderes de seus itens.
Premeditando uma dura batalha contra o próprio senhor do inferno no próximo ato, o jogador enfrenta legiões inteiras lideradas por Azmodan que estão atacando um dos Fortes da resistência humana. Se vasculhar cada detalhe do mapa antes do boss desse nível, você irá termina-lo se sentindo um semi-deus. Isso confere uma coerência a narrativa do game, quando percebemos que os anjos são incapazes de enfrentar Diablo, depositando no player a responsabilidade de salvar os mundos. Esse é um ato relativamente curto, mas não menos quanto o IV a resolução.
O que não significa que ele não leva tempo para ser concluído. O que o Ato IV não tem de conteúdo narrativo, ele tem de gameplay com desafios e inimigos extremamente fortes. Sem contar a própria batalha com Diablo que acontece em dois planos (contando Submundo sombrio que ele te carrega durante a batalha) e amarrando tudo isso com belas cutscenes dignas de Holywood, aliás nada melhor do que fechar este post com a cena final do game.
10 anos depois, ainda me pego pensando: como é que a Blizzard acertou tanto com os 4 atos de Diablo 3? A resposta não está só na narrativa. Está em como eles hackearam nosso cérebro de jogador.
Existe uma matemática oculta por trás dessa decisão. Sabe aquela sensação de "só mais uma quest" que te faz virar a noite? Os 4 atos são cientificamente calibrados pra isso. Vamos fazer umas contas rápidas: um filme de 2 horas tem 3 atos de 40 minutos cada. Diablo 3, com suas 15-20 horas de campanha, divide isso em 4 atos de 4-5 horas. Se fossem apenas 3 atos, cada um teria 6-7 horas. E sabe o que acontece depois de 6 horas jogando? Só o pó. Aquele momento que você pensa "caramba, isso não acaba nunca?"
A Blizzard percebeu isso ainda em Warcraft III, quando experimentou contar a história por perspectivas diferentes em vez de uma narrativa linear. Não é coincidência que World of Warcraft também divide suas expansões em 4 grandes patches de conteúdo. Há um ritmo natural que emerge dessa divisão, algo que os japoneses já conheciam há séculos.
Enquanto nós ocidentais estávamos presos no começo-meio-fim aristotélico, o Japão contava histórias através do Kishōtenketsu: Ki (introdução), Shō (desenvolvimento), Ten (reviravolta) e Ketsu (conclusão). Soa familiar né? É basicamente o que Diablo 3 faz, mas com esteroides de action RPG. Pensa nos seus JRPGs favoritos - Final Fantasy, Chrono Trigger, Persona. Todos usam variações dessa estrutura. A Blizzard só pegou emprestado e adaptou pro estilo ocidental de "matar demônios e pegar loot".
O genial é como cada ato engana seu cérebro no bom sentido. O Ato 1 é o tutorial mais bem disfarçado da história dos games. Você acha que tá salvando o Deckard Cain, mas na real tá aprendendo como funciona o sistema de loot, as skills, o crafting básico e a importância dos waypoints. Nada de NPC chato falando "aperte X pra atacar". Você aprende fazendo, com urgência narrativa real. É design puro.
No Ato 2, a Blizzard foi esperta ao criar uma falsa calmaria com duas tramas paralelas - Belial e Zoltun Kulle - que se alternam como ondas. Quando uma história desacelera, a outra esquenta. É como assistir duas séries ao mesmo tempo no Netflix, só que perfeitamente integradas. Esse ato evita o infame "barrigão do meio" que mata tantos RPGs por aí.
O Ato 3 seria tradicionalmente o clímax, mas aqui a Blizzard subverte. É onde você finaliza sua build, pega os melhores legendários e domina completamente as mecânicas do jogo. A batalha com Azmodan não é só um boss fight - é sua formatura. Você não tá mais aprendendo a jogar. Você É o jogo. É um grind que não parece grind porque cada batalha é uma demonstração do seu poder crescente.
E então vem o Ato 4, o mais curto mas onde cada segundo vale ouro. Depois de 15+ horas, você não quer mais tutoriais ou apresentações. Você quer testar tudo que aprendeu contra o chefão final. É pura adrenalina condensada, com a batalha contra Diablo acontecendo em múltiplos planos - literal e figurativamente. Menos é definitivamente mais quando você já investiu tanto tempo na jornada.
O impacto dessa estrutura reverberou pela indústria.
The Last of Us Part II divide sua narrativa em 4 dias que funcionam como 4 atos, cada um explorando uma perspectiva moral diferente. God of War (2018) usa os reinos nórdicos para criar 4 atos naturais de progressão. Hades transforma as 4 áreas do submundo em 4 níveis crescentes de dificuldade narrativa e mecânica. Não é coincidência que todos esses jogos ganharam Game of the Year.
O problema dos 3 atos em games fica claro quando analisamos a distribuição típica: Ato 1 vira um tutorial eterno que ocupa 33% do jogo, Ato 2 se transforma num grind interminável de outros 33%, e o Ato 3 vira uma corrida pro final que deixa o jogador com aquela sensação de "peraí, já acabou?". Com 4 atos, a distribuição fica mais orgânica: 25% de introdução digestível, 30% de desenvolvimento sem arrastar, 30% de clímax falso mas satisfatório, e 15% de explosão final concentrada. Cada ato tem sua curva completa de satisfação. É como comer 4 hamburgers pequenos em vez de 1 gigante - mais satisfatório, menos enjoativo.
O futuro parece ainda mais interessante. Baldur's Gate 3 já experimenta com atos modulares onde, dependendo das suas escolhas, você pode ter experiências de 3, 4 ou até 5 atos. Starfield prometeu narrativas procedurais com número variável de atos baseado em como você joga. O futuro não é fixar em 4 atos, mas entender que games precisam de estruturas flexíveis que respondam ao jogador.
A lição que Diablo 3 nos ensinou é profunda: games não precisam imitar cinema. São experiências de 20, 40, às vezes 100 horas. Aplicar estrutura de filme de 2 horas é como usar build de Barbarian no Wizard - simplesmente não faz sentido. A Blizzard entendeu que jogador quer progressão constante, que fadiga narrativa é real, e que mais atos significam mais checkpoints de satisfação.
E o mais importante: às vezes quebrar a regra não é rebeldia. É evolução. Da próxima vez que você jogar um RPG, conta os atos. Não pelos capítulos que o jogo mostra, mas pelos momentos de "respiro narrativo". Aposto que os melhores têm 4 ou mais. E se você é dev? Talvez tá na hora de repensar aquela estrutura de 3 atos que você aprendeu no YouTube.
Afinal, se funcionou pra matar o próprio Diabo, deve funcionar pro seu próximo projeto.
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