Coringas - As Muitas Faces do Personagem - Claudio Siqueira

Adaptações para o cinema, videogame, animação ou série costumam ser muito criticadas e meu saudoso professor de Teoria Literária, Ivo Lucchesi, certa aula me disse que uma adaptação só é melhor do que o livro se o livro for muito ruim.

Essa aversão à versão é justa já que muitas das adaptações ocorriam de forma tímida tornando-se uma pálida versão do original. Isso se deve ao fato de que a tradução das obras literárias e quadrinhísticas (os formatos de mídia escrita) para o audiovisual visa angariar um grande público em contrapartida do restrito, porém cativo, da mídia impressa.

A Transmídia, que já era utilizada antes mesmo de ter sido concebida por Henry Jenkins agora é criada em profusão. O presente artigo pretende mostrar as diversas versões do personagem Coringa, das HQs de Batman, da DC Comics, para as telonas e exemplos de animações e games, além de revelar a eminência parda responsável por sua criação, um personagem de Victor Hugo.

Este artigo é em memória de Denny O'Neil, criador do vilão Ra's al Ghul, que originou a consagrada trilogia de Christopher Nolan, falecido dia 11 de junho deste ano.


Joaquin Phoenix levou o Oscar por seu pavoroso Coringa ( por pavoroso, me refiro tanto ao filme quanto ao personagem que intitula a trama) e quando digo "pavoroso", estou elogiando. Dentre os muitos coringas que estrelaram na tela, tivemos um hiato de 22 anos entre o pândego e inocente bozo maléfico de Cesar Romero (da série televisiva sessentista recheada de onomatopeias) até o icônico gângster gótico de Tim Burton, vestido pelo não menos icônico Jack Nicholson. Curiosamente, 22 era o número atribuído à carta do Louco, no Tarô.

Outro hiato e eis que surge o assustador Coringa de Heath Ledger e, pouco depois, a mais criticada versão, vivida por Jared Leto; e mais duas (de Roger Stoneburner e Cameron Monaghan), que passaram praticamente despercebidas, salvo pelos que assistiram as séries Mulher Gato e Gotham. O fato é que Ledger não chegou a curtir os louros da vitória em vida, já que demorou para se despir do Exu brabo que encarnou, além de sua versão do Coringa ter sido rapidamente “substituída” pela atuação cristalina de Phoenix. 

Seja como for, frequentemente nos deparamos nas redes sociais com memes comparando as várias versões do palhaço do crime nas telas, rendendo críticas e homenagens às mesmas. Não venho por meio deste artigo defender ou rebaixar esta ou aquela versão, mas expor as muitas versões do personagem no cinema e elucidar os momentos e fases nas HQs que serviram de base para cada uma.


Cesar Romero - Batman (1966)

Em 1966 Adam West desponta como o Batman nada fitness que faltava pouco dar mesada ao Robin bambino vivido por Burt Ward. A série foi ao ar pela American Broadcasting Company (ABC) - que hoje emplaca nomes como Grey’s Anatomy, The Good Doctor e How to Get Away With Muder - e chegou ao Brasil pela TV Paulista, na época, canal 5, ainda em preto e branco, que mais tarde foi comprado pela Rede Globo, que passou a exibir a série em horário nobre até ser repetida à exaustão no SBT, como as séries Chaves e Chapolin, tendo animado a infância da década de 1980. Cesar Romero fez um Coringa caricato que tinha tudo a ver com o personagem e com o clima da série.

Filho de uma cantora cubana e neto do lendário José Martí*, sua família decaiu economicamente após a crise de 1929 e logo em seguida, Romero ingressou na carreira de ator, já interpretando gangsters italianos. Contracenou com Carmen Miranda em Aconteceu em Havana (1941) e até com Frank Sinatra em Onze Homens e um Segredo (2001), mas seu papel como Coringa foi o que realmente alavancou sua carreira, que nunca chegou ao estrelato, sempre em papéis coadjuvantes. A série do “Soc, Tum, Pow” voltou à ativa na televisão brasileira em canais inexpressivos, mas só veio à tona mesmo no início dos anos 2000, com uma paródia youtúbica a la Tela Class. “Santa Feira da Fruta, Batman!” 


*José Juan Marti Pérez. Político, jornalista e poeta cubano


Jack Nicholson - Batman (1989)

Com o passar dos anos o personagem amadureceu a duras penas no inconsciente coletivo dos leitores. Cortesia de Danny O'Neil (falecido recentemente, no dia 11 de junho) que, junto a Neal Adams, devolveu o homem morcego às suas origens obscuras. A tão aclamada trilogia de Christopher Nolan onde Ra's al Ghul aparece como mentor e responsável pela parte essencial do treinamento de Bruce Wayne para posteriormente se tornar um inimigo  não teria existido já que o mesmo fora criado por ambos. Danny O'Neil mergulhou fundo na psiquê do personagem e trouxe a sombra à tona... ou devolveu Batman a ela. Com essa fase e a abordagem posterior de Frank Miller, ninguém melhor do que Tim Burton (com sua estética trevosa e ao mesmo tempo fofinha) e Jack Nicholson (com sua conhecida careta emblemática presente em O Iluminado) para fazê-lo.

A despeito das duas risíveis continuações (de Joel Schumacher), o universo de Tim Burton funcionou muito bem até o segundo filme, com talvez o melhor Pinguim já concebido e uma Mulher-Gato de fazer inveja à Madonna no clipe Erotica, que só seria lançado quatro meses depois do filme. Ambos passaram por extenso e intenso trabalho de maquiagem, mas o personagem de Danny DeVito era um Quasímodo gângster e tinha de ter toda a sua fisionomia alterada enquanto as caras e bocas de Jack Nicholson eram mais que suficiente para dar vida ao Coringa. A simples menção pelo cirurgião plástico de que os nervos faciais haviam sido totalmente seccionados era o bastante para que acreditássemos mais tarde ao ver o seu sorriso.

Como era de praxe dos antigos filmes de quadrinhos, a versão para as telonas era sempre um paliativo e a história original era modificada para se adaptar a um longa metragem. O Coringa morre no final e foi o responsável pela morte dos pais de Bruce Wayne. Heath Ledger deveria ter dado ouvidos a seu antecessor, já que todo ator que encarna o palhaço já dançou com o demônio sob a luz do luar... 


Roger Stoneburner (Quem?) - Aves de Rapina (2002) 

Muito antes do filme, houve uma série das Aves de Rapina pela The Warner Bros Television (TWB), onde o Coringa, durante um  flashback, atira em Barbara Gordon, reproduzindo o canônico episódio retratado em Batman: A Piada Mortal (1988). Embora o desconhecido Roger Stoneburner esteja caracterizado de uma forma cômica (no mau sentido para o personagem), sua participação na trama foi tão pálida que seu nome nem apareceu como parte do elenco. O Coringa foi creditado a 


Mark Hamill (Ele?!) - Batman: The Animated Series (1992)

O primeiro Luke Skywalker de Guerra nas Estrelas, que emprestou sua voz ao personagem durante a série e para o desenho animado Batman: The Animated Series (1992), além da série de games Batman: Arkham.

Heath Ledger - Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) 

Ledger realmente entrou no personagem! Ou talvez tenha sido ao contrário e o personagem tenha se recusado a sair, como cogitei no sexto parágrafo. A caracterização da boca é um show à parte e voltou a entrar em cena na HQ Coringa (2008), de Brian Azzarello.

O motivo pelo qual a boca foi cortada nunca é revelado ao longo do filme, assim como o motivo pelo qual não tem impressões digitais, suscitando a ideia de que teria caído no ácido, como conta a história original do personagem e é mostrado no Batman de Tim Burton. O sorriso psicótico é conhecido no estudo da linguagem corporal como a contração da AU13 (Unidade de Ação 13), o músculo Angulis Oris, tão bem representado por Jack Nicholson e dramatizado na cicatriz de Ledger.
Se o Coringa de Phoenix nos dá pena e nos desperta empatia pelo personagem, o de Ledger dá medo e… nojo! Seu terno sujo, sua maquiagem mal feita e seu cabelo desgrenhado nos passam muito mais a impressão de abandono que justifica sua fala: “Eu sou só um agente do caos…” Muito mais que um flagelo social, o Coringa de Ledger é uma entidade… a própria Sombra da psiquê humana encarnada. 

Cameron Monaghan - Gotham (2014 a 2019) 
Em Gotham, o proto-Coringa passa por uma verdadeira metamorfose ao longo da trama tal como um personagem nipônico evolui. Trabalhando o arquétipo dos gêmeos, a série apresenta os irmãos Jerome e Jeremiah Valeska.

Não vou me alongar acerca de ambos portanto vamos nos ater ao primeiro. Seu aspecto deriva da HQ A Morte da Família (2016), onde o Coringa se submete voluntariamente a uma cirurgia estética. Cortesia do Mestre das Bonecas (que, a meu ver, foi descaradamente chupinhado e num próximo artigo vou mostrar de qual personagem). O sorriso cortado fica por conta do filme estrelado por Ledger. 


Jared Leto - Esquadrão Suicida (2016)

Chegamos ao tão criticado Coringa de Jared Leto. E vou dizer a vocês que não vou criticá-lo. “O quê?” - você se pergunta aí em sua tela. Isso mesmo! Sou bastante chato e crítico, mas Leto não mandou mal. “O QUÊ?!” Sim, ele não mandou mal não.

Embora Leto estivesse parecendo uma mistura de Marilyn Manson com MC Guimê, o Coringa de Esquadrão Suicida é criticado por ter sido uma versão infiel ao personagem, quando na verdade é um blend do Coringa de Batman: Descanse em Paz (2013), HQ de Grant Morrison, com as risadas presentes em Batman: A Piada Mortal (1988) tatuadas em seu corpo. Os dentes blindados foram só pra dar o estilo gangsta.


Joaquin Phoenix - Coringa (2019) 

Depois do assustador e asqueroso Coringa de Heath Ledger, todo mundo se perguntava quem seria o próximo ou quando haveria um tão bom assim. Onze anos após o fatídico personagem ter bombado (literalmente) as telonas, Joaquin Phoenix é escalado para protagonizar um filme… do vilão!

Quando assisti o trailer, pensei: "Ou vai ser muito bom, ou vai ser uma m...!", e o filme realmente dividiu o público e a crítica, principalmente os fãs de quadrinhos e do personagem. Não que eu duvidasse da atuação de Phoenix, mas tanto a caracterização me parecia duvidosa quanto a cena das pessoas mascaradas; uma clara alusão a V de Vingança.

O Coringa como palhaço de rua em De Volta à Sanidade

O que ninguém parece ter percebido é que a evolução do personagem e toda a sua ambientação lembram a HQ De Volta à Sanidade (1995), da antiga publicação Um Conto de Batman. O trocadilho presente no nome original (Going Sane) se perde na versão brasileira e a trajetória do personagem de Phoenix dramatiza exatamente o trocadilho: go insane... A cena da entrevista no final do filme está presente na HQ O Cavaleiro das Trevas. 


O Homem que Ri (1869/1928)

Um certo personagem de Victor Hugo foi a eminência parda por trás do personagem, principalmente para as versões de Ledger, Monaghan e Phoenix. Lançado em 1869, O Homem que Ri (L'Homme Qui Rit) não fez muito sucesso, mas se tornou um longa metragem em 1928 pelas mãos do cineasta alemão Paul Leni. Houve até uma HQ com este título.


Conrad Veidt

A história? O pai de do menino Gwynplaine traiu o Rei James II, da Inglaterra, e foi condenado à dama de ferro (instrumento de tortura que, entre outras coisas, batizou a banda Iron Maiden e serviu de alcunha nada lisonjeira a Margareth Thatcher). Para o menino, foi encomendada uma pequena “cirurgia” que o deixaria “sorrindo” pra sempre. Para ganhar a vida, ele, uma menina por quem mais tarde se apaixonou e um velho que os adotou fazem pequenos espetáculos mambembes.
O corte na boca é o detalhe presente no Coringa de Ledger. O proto Coringa da série Gotham tanto possui o corte na boca como cresceu em um circo, mas o Coringa de Phoenix é o cerne da questão lavantada em O Homem que Ri. Em um determinado momento do romance, Gwynplaine exclama para um lorde: "Eu sou um símbolo. Ah, vocês todo-poderosos, abram os olhos. Eu represento a todos. Eu encarno a humanidade (...)". Ambos, tanto Gwynplaine quanto o Coringa de Phoenix, são representações do lumpen. O Quasímodo, de O Corcunda de Notre Dame (também de Victor Hugo), o Povo de Rua, da umbanda, o Zé Ninguém, de Wilhelm Reich... e talvez até Legião, da Bíblia.
Claudio Siqueira- formado em Jornalismo pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), autor da primeira monografia sobre Storytelling & Transmídia da Cidade Maravilhosa, cheia de embustes mil.

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